«Claro que não "vai tudo"» - A pansexualidade, dos mitos à fetichização - Mara Nunes - Entrevista

Mara Nunes é cantora, compositora e atriz. Mulher pansexual, é em Londres que vive atualmente e partilha a vida com o seu companheiro. Nesta entrevista falamos de pansexualidade, fetichização e preconceito.

Para quem nada saiba sobre pansexualidade - o que é? Como definirias?

As "labels" significam coisas diferentes para cada pessoa, mas para mim é alguém que não se sente atraidx especificamente por coisas que definam um género. Soa um pouquinho vago mas acaba por afastar a atração sexual do binário de género. Incluindo melhor as pessoas não binárias.

Numa primeira conversa que tivemos, disseste-me que o teu companheiro é trans. Foi com ele que percebeste que és pan? Como aconteceu?

Sim. Na verdade quando me mudei para Londres, 3 anos antes de o conhecer, saí do armário como bissexual. Mas nunca gostei de labels. Quando comecei a estar mais envolvida na comunidade queer aqui, conheci pessoas que se identificavam como pan e senti que tinha muito em comum com elx. É uma sensação maravilhosa quando vês os teus sentimentos validados por outras pessoas. E aí percebi a importância das labels. O meu namorado teve algo a ver com isso porque senti que era importante para ele eu ser vocal sobre ser pansexual, porque o apagamento de pessoas trans é tão grande, mesmo em cidades como Londres, e mesmo dentro da comunidade, que não tive problema nenhum em começar a falar mais sobre isso. 

Tiveste muita dificuldade em explicar a tua orientação sexual às pessoas que te são próximas? Como foi essa experiência?

Ai Ahah
Sim, tentar explicar aos meus pais foi interessante para dizer pouco. As expressões "mas então não tens preferência" ou "vai tudo" para mim não me ofendem muito porque sempre fui muito a favor da libertação sexual das mulheres. E, talvez como mecanismo de defesa, sempre falei muito sobre isso. Sobre achar que as mulheres não devem ter vergonha de serem sexualmente ativas. Mas há pessoas mais tímidas que eu, a quem estas expressões magoariam. Porque claro que não "vai tudo". Mas para além de pequenos comentários como esses tenho a sorte de muitos dos meus melhores amigos serem LGBTQ+ e de a minha família ter aceite o meu parceiro de braços abertos. Nem todos têm essa sorte, eu sei.

Sentes que morar fora de Portugal facilita a "aceitação" da pansexualidade? Achas que existe menos descriminação?

Há mais validação. Não tenho a certeza sobre mais ou menos discriminação porque eu sou branca e tenho um look hétero-normativo. Passo por hétero e raramente alguém me chateia. Mas já fui a locais em Portugal com o meu namorado, que é trans e negro, e ele sentiu-se desconfortável com os olhares. Mas ele também não iria a algumas cidades inglesas por saber que lá há homofobia e racismo. Na verdade, há pessoas que escolhem o ódio em todo o lado. Eu tenho a sorte de passar por entre as gotas da chuva.

Para mulheres pansexuais e até mesmo bis cujos companheiros são homens, fala-se muitas vezes no straight-passing privilege. Achas que isso existe, ou é mito? Achas que é sequer um privilégio?

Sem dúvida que é um privilégio. Mesmo o facto de não notarmos por vezes é prova de que é um privilégio. Em primeiro lugar não temos de estar preocupadas com as pessoas julgarem-nos à primeira vista. Os sinais queer que lançamos são subtis por alguma razão. Umas doc martens aqui, uns "undercuts" acolá. Mas no meu caso isso sempre veio do meu medo subconsciente. Medo porque sei que no momento em que não pareço hétero, sou "other".

Ainda estou a trabalhar em largar essas tendências de homofobia internalizada comigo própria. As outras pessoas ficam sempre lindas com cabelo curto, mas se fosse eu parecia "demasiado andrógena". É uma camada de proteção, contra a homofobia e discriminação que ainda existe para com pessoas "queer looking", "camp", "masculinas". Tem de acabar.


Sendo um privilégio por um lado, achas que pode contribuir para o apagamento de pessoas pansexuais e bis dentro da comunidade LGBTQIA+? Com a ideia de "se passas por hétero não és queer o suficiente". Sentes isso?

Sim, sinto isso também. É uma faca de dois gumes, não é? Senti especialmente ao início quando ia a bares gays e ninguém sequer olhava para mim. Mas uma camisola de flanela no dia seguinte e a coisa funcionou. Ahah Mas, sem brincadeiras, sinto que a comunidade que eu conheço tem capacidade para largar esses preconceitos mais facilmente do que as pessoas hétero vão largar a sua homofobia.

Enquanto mulher pansexual, alguma vez te sentiste fetichizada?

Sim. A toda.a.hora. em aplicações como o Tinder ou o Hinge. Casais hétero a tentar threesomes mas a rapariga não tem interesse nenhum em ti, é o pão nosso de cada dia. Andar de mão dada com uma mulher é impossível sem ouvir comentários de tipos na estrada. É como se existíssemos só para o homem hétero. Só porque há uma possibilidade de estarmos interessadxs neles.

No geral, sentes que és respeitada nos meios em que te inseres? Achas que estando ligada às artes estás inserida num ambiente menos conservador

Sim, sinto que o pessoal das artes é o meu porto de abrigo. Sempre foi. Sempre me senti aceite, validada e feliz. Mesmo os que não são LGBTQ+ têm uma maneira brilhante de estar interessados na comunidade e de serem aliados. Isto na minha experiência pelo menos.

Diz-me dois mitos clichés sobre pansexualidade.

Que nos sentimos atraídos por toda a gente. Para além de muita gente ter um "tipo", é só ilógico. Mesmo o pessoal hétero não gosta de toda a gente do sexo oposto.

Que não há homens pansexuais. Não só há homens straight-passing pansexuais, como há homens trans pansexuais que até se sentem interessados por homens gays. Não há caixas para pôr pessoas. Cada um é o que é e sente o que sente.


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