As marcas do abandono parental - Maria João Francisco - Entrevista

 O abandono parental traz consequências emocionais, às vezes irreversíveis. A ausência de um dos supostos cuidadores é, sem dúvida, um fator determinante na formação da personalidade de um indivíduo. Nesta entrevista, Maria João Francisco fala-nos dessa experiência na primeira pessoa.

Numa primeira conversa que tivemos, percebi que o abandono parental aconteceu por parte da tua mãe. Que idade tinhas quando ela foi embora?

Tinha 17 anos.

Ou seja, nessa altura já te apercebeste bem do que estava a acontecer, certo?

Não propriamente. Só caí em mim uns meses largos após o sucedido. Ela é doente cardíaca e estava a ser seguida por consultas de rotina, e disse-nos (a mim e ao meu pai) que iria a mais uma consulta. Foi e não voltou. Nesse dia fomos à polícia porque pensávamos que ela tinha desaparecido ou alguém lhe tinha feito mal, porque nunca na vida imaginámos tal cenário. Tivemos de voltar 24h depois, para dar então a pessoa como desaparecida. Mas, ao chegar a casa, o meu pai foi verificar o local onde tinham as poupanças guardadas (não era debaixo do colchão, mas o conceito era esse), e não estava lá dinheiro nenhum. Ou seja, ela tinha pegado no dinheiro e tinha feito alguma coisa.

Ela chegou a dar algum motivo para o ter feito?

Nós ainda considerámos a possibilidade de ter acontecido alguma coisa de mal durante a consulta – consulta essa que nem sequer chegou a existir, e nós só descobrimos depois. Porque ela levou as chaves de casa, deixou a roupa toda no armário, a casa toda arrumada. As coisas todas normais. Era um dia normal, só que naquele dia ela não voltou a casa.

Mais tarde, eu acabei por me reencontrar com ela para pedir justificações, porque sentia que a minha vida não conseguia avançar. Perguntei-lhe “o que é que aconteceu para tu me teres feito isto?”, e as respostas dela foram: “eu é que sei, são coisas minhas, isto são coisas da minha vida, não tens nada a ver com isso”.

Então a partir daí, no resto da tua adolescência, foste acompanhada apelas pelo teu pai?

Sim. O resto da minha adolescência, que virou idade adulta de repente, foi acompanhada pelo meu pai. Pessoa essa, que nunca me foi dada a conhecer verdadeiramente. Porque acontecia uma espécie de alienação – mesmo vivendo todos juntos, a minha mãe dava-me a entender que o meu pai era de uma maneira que não era real. Ou seja, havia mal entendidos lá em casa, discussões, porque a minha mãe dizia “o teu pai disse isto”, “o teu pai tem esta opinião de ti”, “o teu pai disse que andas vestida como uma criminosa”. Basicamente, o meu pai foi uma pessoa que não me foi dada a conhecer porque a minha mãe punha-me sempre contra ele. Até hoje, nunca entendo os motivos. Muito provavelmente, seria para causar uma separação entre mim e ele. Ela ia-se embora mas levava-me com ela e deixávamos o meu pai – nunca cheguei a perceber porquê, mas também não quero perder muita energia a pensar nisso.

E nunca chegaste a saber o verdadeiro motivo da partida dela?

Não, até hoje. Já tivemos várias conversas. Tivemos uma que foi 6/7 meses após ela ter ido embora, foi o reencontro presencial, em que eu tentei entender os porquês e ela simplesmente não mos disse. Eu quis saber. Dei-lhe aquela hipótese: “okay, pode ficar tudo bem, se tu me disseres o que é que aconteceu. Estes meses que eu tive foram maus, mas se calhar se me explicares, pode ser que nos resolvamos”. Mas não, ela não me explicou nada, nunca me disse motivos de nada, tivemos várias conversas e ela nunca me revelou o motivo de ter ido embora.

O abandono parental pode trazer consequências negativas no crescimento e desenvolvimento de uma pessoa. Aconteceu contigo? Que consequências teve para ti?

Teve consequências super negativas, obviamente. Porque, ao ter-me apercebido que tinha sido abandonada, que não foi uma coisa acidental, mas sim propositada, alguém ter saído da minha vida daquela maneira – porque eu era muito chegada à minha mãe, dávamo-nos super bem, daí eu não ter percebido nem ter encaixado a situação do abandono – custou-me a perceber, “como assim, ela abandonou-me? Ela gostava tanto de mim”. Afterall era a minha mãe.

Eu entrei numa espiral depressiva, que só mais tarde é que percebi. Porque na minha cabeça ecoava “se a minha mãe me fez isto, o que é que os outros que não me são nada me vão fazer?”, e isso mexia comigo. Isso mexeu comigo de tal forma, que eu cheguei mesmo a ponderar o suicídio, para além de ter tido vários episódios de automutilação, porque eu não me sentia amada. Sentia que tinha perdido a única pessoa no mundo que era capaz de me amar verdadeiramente. Estive mesmo ali na borda da ponte e pensei, e não sei porquê, mas acabei por não o fazer, embora tenha continuado com os comportamentos autodestrutivos. Automutilação, álcool, tabaco…

Partilhei isto, na altura, com uma amiga minha, que até hoje continua minha amiga, que acabou por me conseguir uma consulta, pelo SNS, para pedopsiquiatria, porque na altura ainda não tinha os 18 anos, e ela também era lá acompanhada. Foi no Hospital do Barreiro, fui acompanhada pela enfermeira Maria José, mas entretanto fiz os 18 e fiquei sem acompanhamento. Fui largada aos leões, largada à vida.

E depois de teres deixado de ter acompanhamento, como é que lidaste com a situação?

Fui lidando. Assumi “okay, vamos seguir com a vida”. Na altura tinha um namorado, fui tendo o apoio dele, fui tendo o apoio do meu pai. Depois, tudo aquilo coincidiu com a altura de entrar para a faculdade, de conhecer novas pessoas, ter novas rotinas… E fui acabando por me distrair. Mas havia uma coisa que era muito notável, e que ainda hoje me acontece, e estou a fazer este trabalho com a psicóloga que me acompanha hoje, que é, eu não me sentir bem naquela casa, na casa onde vivíamos os três. Eu chegava a ir super cedo para Lisboa, onde estudava na altura, e a chegar super tarde, para passar o mínimo de tempo em casa, porque aquela casa não me fazia bem, eu não me sentia bem ali. Eu não era capaz de fazer tarefas domésticas, não era capaz de arrumar o meu quarto, não era capaz de fazer nada. 

Porque a minha mãe teve um comportamento muito protetor – no sentido em que, eu chegava a casa das aulas, e dizia “bem, vou arrumar o meu quarto”, e ela dizia “não, deixa estar que a mãe faz”. Ora, obviamente, o que um adolescente mais quer ouvir, é que alguém vai arrumar o quarto por ele. Queria fazer uma refeição, “não, deixa estar, a mãe faz”. Era tudo assim. Eu não fazia nada em casa, acabei por ficar sem saber fazer nada em casa, fui deixada à mercê, e durante muito tempo tive a casa de pantanas, tal e qual como a minha saúde mental. Eu não sabia fazer as coisas, não as fazia. E o meu pai tinha uma mentalidade muito retrógrada, muito “a mulher é da casa”, e isso revoltava-me, sempre me revoltou. E eu simplesmente não conseguia ser a mulher da casa porque eu queria ter a minha vida. Não queria estar presa a uma casa, como fiquei após aquele acontecimento. Porque eu deixei de ser uma adolescente para passar a ser uma dona de casa.

E como é que ficou a tua relação com o teu pai?

A relação com o meu pai parece que foi reconstruída do zero. Porque, lá está, como eu referi anteriormente, eu não conhecia aquela pessoa que tinha ali comigo. Então fomo-nos conhecendo. Ficou uma relação forte. Forte em tudo, no afeto, mas também nas cabeçadas, nas turras, nas opiniões. Tivemos muitas discussões, mas ficámos muito amigos e muito unidos.

Sentes que o facto de teres crescido sem a tua mãe moldou ou influenciou a tua relação com o Outro? A tua personalidade, as tuas relações?

Sinto que moldou completamente a minha maneira de ser, a minha maneira de olhar para os outros, as minhas relações… Porque, no que diz respeito a mim mesma, moldou-me no sentido em que, não posso tomar nenhuma relação como garantida. Isso ficou na minha cabeça. Por mais que eu lute, se nem a relação com a minha mãe foi duradoura, que é suposto no protótipo de família ideal, o amor de mãe ser numa coisa eterna… Isso simplesmente é uma coisa que não existe na minha vida.

No que diz respeito à relação com o Outro, tornei-me uma pessoa muito fria, mas continuo a ser ingénua e a ser inocente. O facto de ter crescido depressa, fez com que eu ainda tenha a ingenuidade e a inocência de uma criança. Mas a confiança já não é da mesma maneira. Eu sinto que ou dou tudo, ou não dou nada. E isto acontece muitas vezes com as pessoas erradas. Sinto que quando tenho à vontade com uma pessoa e aquela pessoa me dá confiança, eu dou tudo de mim. Dou a minha amizade, conto as minhas histórias… Mas para alguém ganhar a minha confiança, vai custar horrores.

Hoje em dia sinto que tenho muito a necessidade do reforço positivo. Que me digam que aquilo que eu faço está bem feito, que eu me estou a portar bem, que estou no caminho certo. Segundo a minha psicóloga, tudo isto deriva do trauma do abandono e do trauma de não ser amada a esse nível. Preciso sempre de ter alguém a dizer “sim, estás no bom caminho, estás a fazer bem!”. Acabei por me tornar perfecionista por ter medo de passar pelo abandono novamente.

No que diz respeito às relações, tornei-me completamente desconfiada. Dos outros, de mim mesma. Tudo me parecia muito enevoado à minha volta. E tornei-me muito sensível e alerta para as situações da infidelidade – porque se eu não fui amada pela minha mãe, não é um namorado que me vai amar. Isto está sempre presente na minha cabeça, é um pensamento contra o qual eu luto todos os dias.

Tiveste algum coping mechanism, ou sentes que ainda hoje te afeta?

Ainda hoje me afeta. Coping mechanism, por assim dizer, não. Tornei-me uma pessoa muito mais ligada às amizades. Dou muito valor às pessoas. Mas ainda hoje me afeta, claro. Não gosto de falar do dia da mãe, não gosto de falar de mães. Sempre que se fala de mãe eu digo “não confundam mãe com a pessoa que pare!”. Isto pode ser muito difícil de se ouvir, mas eu sinto que há pessoas que foram feitas para ser mães e pessoas que foram feitas só para parir.

Neste momento, como está a tua relação com a tua mãe?

Neste momento, a minha relação com a minha mãe não existe. Acho que a última vez que falámos foi pelo Fecebook, há cerca de dois anos. Não falámos mais porque ela tinha atitudes que, para mim, não tinham cabimento nenhum e que eram desrespeitosas. Ela dizia que quando vinha de férias vinha ver-me na rua, de longe. E nunca me explicou o porquê de nunca me vir falar – e como eu não gostava disso, nem do facto de ela nunca me contar os motivos, decidi simplesmente desligar. Ela deixou completamente de me falar, não tenho tido notícias dela.

Que mensagem gostarias de deixar a quem tenha passado pela mesma situação que tu?

A mensagem principal é: procurem ajuda. Acho que isso é essencial porque ninguém está preparado para perder uma peça tão fundamental da vida. É que isto é diferente de uma perda física, é uma perda emocional. Eu sei que a pessoa está lá, que a pessoa existe, que a pessoa está viva, mas a pessoa não quer saber de mim. E isso é muito difícil. Se formos frágeis, torna-nos ainda mais frágeis, se formos fortes, torna-nos fracos. Não há nada que nos prepare para o facto de a nossa mãe não querer saber mais de nós.

Não se culpem. Os erros dos outros, só a eles lhes pertencem. Ela fez isto, foi um erro, para além de ser crime… Nunca se sintam culpados, porque o erro foi dela, a atitude foi dela, e não tem nada a ver connosco. Nós fomos simples vítimas de uma decisão mal tomada. A culpa não foi minha. Demora a percebermos isto, mas é importante!

Perceber também que nem todas as pessoas são farinha do mesmo saco da pessoa que nos fez mal, da pessoa que nos magoou. Tentar não generalizar. Dai o meu apelo principal ser o procurar ajuda. E ter noção de que o apoio que se vai precisar vai durar anos. Tentem procurar ajuda, mesmo!

E não tenham vergonha! Tentem ter amor próprio, amar-se.

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