Abuso emocional: Experiência e consequências - Entrevista

 O que é abuso emocional? Que consequências traz? Como é passar por isso? Nesta entrevista, Olivia Bishop (nome fictício) conta-nos tudo, na primeira pessoa.

Quando falamos de abuso emocional, no teu caso, estamos a referir-nos a quê, exatamente?

No meu caso específico estamos a referir-nos a um pai que, apesar de na infância ter sido carinhoso, com o divórcio dos meus pais e o crescimento e transição para a adolescência, se foi tornando progressivamente mais manipulativo, emocionalmente volátil e verbalmente abusivo.


Quando começou, exatamente?

É difícil fazer um pinpoint preciso, porque foi escalando, foi progressivo. Aos 11 anos houve um berro que foi completamente abusivo e despropositado, aos 8 anos havia uma manipulação do meu comportamento que, olhando para trás, é claramente abusiva. Mas nesses momentos, ao mesmo tempo, ainda tenho memórias maravilhosas do meu pai, como um pai ternurento, disponível e presente (apesar de distraído). Foi escalando com o ver-me como adulta (entrada na adolescência) e com as minhas tentativas de me autonomizar, foi um progresso que eu não vi, até que aos meus 20 anos era totalmente insustentável.

Percebeste "a tempo" o que estava a acontecer, ou foi numa altura em que já tinha deixado marcas, consequências?

Não percebi a tempo, definitivamente. É uma situação de "quem veio primeiro, o ovo ou a galinha?", mas a minha personalidade é muito people pleaser, e isso joga muito bem aqui. Uma coisa alimenta-se da outra, e os danos causados à minha saúde mental só crescem. É difícil saber o que uma pessoa mais confiante inatamente teria feito no meu lugar, mas eu fui internalizando culpa, querendo apaziguar, e somando dano, e inevitavelmente guardando para mim trauma.

Portanto a tua situação com o teu pai teve influencia na tua personalidade.

A minha personalidade já lá estava, o meu pai já era uma pessoa abusiva, mas as duas coisas potenciaram-se, como uma "tempestade perfeita", digamos assim.

 E como é que influenciou as tuas relações interpessoais?

Eu tornei-me numa pessoa insegura e com imensas defesas para tentar compensar "automaticamente" essas defesas, portanto era ácida no contacto interpessoal, difícil de aproximar, muito efusiva, mais superficial e afetiva. E, acima de tudo, incapaz de ver essas mesmas características em mim. É impossível saber quantas pessoas afastei do meu caminho (relações românticas, profissionais, de amizade). Neste momento não acho relevante pensar muito nisso, porque estou no processo de reconhecer o que em mim quero mudar por mim mesma e avançar para ter mais oportunidades de afeto e enriquecimento emocional e interpessoal. Mas não tenho dúvida de que afastei pessoas e fui tóxica. Tenho esperança de não ter sido demasiado tóxica com ninguém.

Neste momento já tens algum coping mechanism para lidar com as marcas que te deixou?

Eu tenho coping mechanism para lidar, acima de tudo, com as histórias que tenho, que são absolutamente ridículas, agora que olho para trás. E o meu poder é basicamente olhar para trás e rir, sem fazer isso todos os dias e pensar nisso constantemente, mas às vezes é uma catarse poderosa. E nessa medida tenho amigos e família que têm a disponibilidade de participar nesse ritual bizarro. Também ajuda que algumas histórias sejam completamente recambulescas! Quanto às marcas mesmo, é complicado, porque tenho alguns problemas de saúde crónicos que nunca se manifestaram até este conflito estar no seu auge. Eu lido com esses problemas, mas nos dias maus, when push comes to shove, é difícil não me zangar com a pessoa específica. Mas posso dizer que são cada vez menos os dias.

Como é a tua relação com o teu pai, atualmente?

Residual a inexistente. A última mensagem que ele me mandou foi um link de Youtube sem contexto nenhum, já não falávamos há meses, demorei um dia a pensar no que responder, e depois lá saquei duma pergunta casual para fazer, à qual ele não respondeu. 

E gostavas que fosse de outra forma, ou sentes que é mais saudável para ti assim?

Eu adorava que fosse de outra forma. Eu tenho memórias maravilhosas de infância. Passeios de sábado de manhã, viagens. Eu posso dizer que comparado com os pais das minhas amigas, o meu pai era muito presente. E eu tenho ativamente saudades dessa pessoa que eu tinha na minha infância. Mas não é uma escolha que eu possa fazer. Eu tentei todas as vias de diálogo possíveis. E em contraponto tenho as memórias de uma pessoa diferente que lentamente surge na minha adolescência e idade adulta, uma pessoa que eu tenho que pensar 2, 3, 4 vezes antes de responder, para não ser humilhada, que é errática e irresponsável, que começa a recorrer a mentiras progressivamente maiores para me manter "em linha", que não me vê como pessoa, mas como um fim para o seu ego, e que não tem problema nenhum em dizer mal de outras pessoas que eu amo. É uma situação penosa (gradualmente menos, já lá vão 10 anos), mas é a melhor para mim, é a única que me permite cicatrizar e evoluir como pessoa.

Quando é que houve o ponto de rotura? Quando é que se afastaram?

O ponto de rotura foi quando eu tinha 20 anos. Estava prestes a licenciar-me, vivia numa cidade diferente da dele, e um dia ele exigiu uma informação muito específica sobre o meu quotidiano na altura, da qual não precisava e à qual nunca tinha tido acesso. Era claramente apenas uma desculpa para exercer poder. Eu podia ter cedido, mas nessa altura as zangas estavam a tornar-se mais regulares e mais intensas e eu sentia-me mesmo a chegar ao meu limite. E disse que não, não disponibilizei essa informação. Disse que ele nunca tinha tido acesso a ela e o mundo continuava nos seus eixos, que não era necessário ele ter acesso a tal detalhe. Ele sentiu-se desafiado e escalou até a uma chamada telefónica fatídica em que ele me disse coisas que não se pode retirar (nem esquecer). Foi mesmo como um namorado a acabar um namoro, o tom, o drama. Eu cheguei ao meu limite e decidi que não podia continuar.

Recebes ou recebeste algum tipo de apoio profissional?

Sim, desde a altura até então (com intermitências) sou seguida por psiquiatria. E há mais de 2 anos que faço psicoterapia. Claro que não é só por causa dele, há toda uma pessoa que eu sou além do abuso. Mas a psiquiatria definitivamente começou por causa deste evento.

E sentes que te ajuda?

Tenho a certeza que sim. Na psiquiatria havia e há um quadro clínico que tem que ser adereçado e tratado, com medicação e com mecanismos no quotidiano. A nível de psicoterapia, é ferramenta de autoanalise que acho que é vital a toda a gente. Se não por um período tão longo como eu, por um mais curto, ninguém vive num mundo perfeito e toda a gente poderá beneficiar de autoconhecimento e autocompreensão para lidar melhor com a sua vida e respetivas adversidades! 10/10. Would recommend!

Que mensagem gostarias de deixar a quem passe pelo que tu passaste?

Eu sei que é assustador quebrar laços com alguém que é família. E sei que é algo que vem inevitavelmente associado com pressão externa de terceiros porque "sangue é sangue", “pai só há um", "olha que o meu já partiu, e quem me dera tê-lo aqui", e outros espaços-comuns, mas só há uma pessoa de quem nós não podemos nos separar, e essa pessoa somos nós próprios. Não existem compromissos ou meios-termos em relações de violência, quer sejam patrões, amigos, namoros ou família. 

E não existe cicatrizar enquanto o abuso continua. Procurem ajuda, procurem compreensão. Tenham auto compaixão, e não tenham medo de explicar porque querem estar longe desta pessoa. Eu lembro-me bem do dia em que me atrevi dizer aos meus amigos que não queria ver o meu pai, e achei que ia ter que contra-argumentar com eles o porquê de ser uma péssima pessoa, e em vez disso eles disseram "ok, parecem-me bem", e ainda me lembro do quão livre me senti. A prisão de abuso é também interior, temos que ter a coragem de nos expressar calmamente a quem amamos. E imaginar um futuro sem aquela pessoa pode parecer impossível hoje, mas não é.

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