Viver com ansiedade e depressão - Filipa Bento - Entrevista

Filipa Bento tem 26 anos. Em 2014 foi diagnosticada com ansiedade e depressão. Nesta entrevista falamos sobre o dia-a-dia de quem convive com estas psicopatologias, e o estigma a elas associado.

Quando é que foste diagnosticada com ansiedade e depressão?

Creio que foi em 2014. A minha avó faleceu em 2013 e eu procurei ajuda depois disso.

Identificas então esse acontecimento como o trigger para se terem desenvolvido esses problemas?

Sim, não foi tanto perder a minha avó, mas sim fazer o clique de que as pessoas mais próximas de mim (pais, irmãs) iriam eventualmente ter o mesmo fim. A noção da morte e de que todos temos um fim ganhou um peso muito maior.

Como reagiste ao diagnóstico? Antes de ser “oficial”, já sabias com o que estavas a lidar, ou foi novidade para ti?

Não fazia ideia do que se passava comigo, o primeiro ataque de pânico que tive aconteceu enquanto estava sozinha. Tinha vindo da Festa da Tróia, tinha acordado de madrugada para atravessar o rio e estava cansada quando cheguei a Setúbal. Fui até à casa de uma prima minha e estava sentada no sofá a sentir-me cansada, ela entretanto teve que se ausentar e nisto eu levantei-me do sofá e senti-me tonta, a sala girou à minha volta. Fui a cambalear até à cozinha e comecei a sentir imenso calor e os dedos das mãos dormentes - pensei que me estivesse a dar uma quebra de tensão ou assim, acabei por tirar a camisa que tinha vestida porque estava a suar em bica, abri um pacote de açúcar e foi goela abaixo.


Mandei uma mensagem à minha prima a dizer que me estava a sentir mal. Sentei-me no chão para ver se acalmava e nada, comi mais dois pacotes de açúcar e tentei ligar ao meu pai que tinha vindo comigo para Setúbal porque tinha que ir trabalhar - não atendeu. Estava com um medo imenso de desmaiar, tremia por todo o lado.

Tentei ligar à minha mãe e irmã Mónica que estavam ainda em Tróia e nada. Sentia-me super assustada, porque não sabia o que se passava, se estava a ter um ataque cardíaco, um AVC ou outra coisa qualquer.

Senti-me completamente sozinha e só sabia que a minha prima vinha a caminho. Passou-me várias vezes pela cabeça que me ia encontrar desmaiada ou sei lá no chão da casa.

Não me lembro já muito bem de como é que foi depois, mas o meu pai eventualmente foi-me buscar e levou-me ao centro de saúde.

Expliquei o que tinha sentido e estava a sentir e o médico picou-me o dedo e mediu-me a tensão e disse que estava tudo bem e que tinha era os níveis de açúcar altos (pudera... 3 pacotes de açúcar). Disse que possivelmente teria sido um "pico de ansiedade", lembro-me perfeitamente. Fui para casa e o que sentia era um sufoco, uma espécie de claustrofobia, mas sem que estivesse fechada nalgum espaço pequeno.

Não tenho grande memória dos dias seguintes, sei que não esperava que voltasse a acontecer, mas voltou...

E o diagnóstico fez-te sentido, ou surpreendeu-te?

Nunca fui diagnosticada com depressão. De certa forma, os médicos que me consultaram sempre evitaram essa palavra, pelo menos eu senti isso. Falavam sempre em ansiedade, crises de ansiedade, picos de ansiedade, pânico, etc… Não me surpreendeu, mas sei que senti que mais ninguém passava por isto.

Sentiste uma espécie de solidão e incompreensão, é isso?

Sim, sim. Tinha imenso medo de ser internada, tinha um pavor enorme de medicação.

Não estava de todo informada sobre saúde mental, depressão, ansiedade, pânico, medicação, etc. Achava que era algo muito menos comum do que é não conhecia ninguém a passar pelo mesmo, por isso sentia que estava sozinha.

Mas só pedi ajuda a nível psicológico quando senti pela primeira vez aquilo que consigo descrever como "vontade de não existir". E foi um dos momentos mais assustadores que vivi até hoje. Depois de um jantar normal em casa com os meus pais e irmã Mónica, mas em que me estava a sentir assoberbada e ansiosa, fui à casa de banho, no piso de cima, olhei-me ao espelho e senti que "não queria estar". Era só aquilo e era muito, Não era não querer estar ali e preferir estar noutro lugar, era não querer estar.

Assustou-me muito e partilhei-o com a minha irmã que me perguntou o que é que eu queria dizer com aquilo e eu não soube responder. Eu não queria morrer, porque tinha (e tenho) medo da morte, mas não queria estar presente. Estava a chegar a um estado em que o sentimento constante de sufoco, acordar com o ritmo cardíaco acelerado todos os dias e não me conseguir acalmar, dormir mal e ter "picos de ansiedade", estavam a fazer com que eu não quisesse sentir nada...

Quando a minha avó morreu, vi o sofrimento que isso trouxe ao meu pai, perdeu a mãe, chorou... E isso bateu-me e automaticamente tornou-se real e presente que isso também me calharia a mim… Durante muito tempo (e ainda existe um Q dessa perceção em mim), aniversários, natais, pascoas, tudo o que é comemoração era um sinal do tempo a passar e desse momento em que vou perder os meus está mais perto...

Deixei de conseguir desfrutar de tudo, hobbies, momentos, atividades, etc. Ainda hoje as passagens de ano são complicadas para mim.

Na altura ainda estávamos a estudar. Como é que conseguiste gerir tudo?

Foi difícil, sentia que não tinha energia para nada e não tinha disponibilidade mental para levar a cabo tarefas mais simples. Por norma não tenho qualquer problema com questões laborais ou académicas. A ansiedade, o pânico e o stress manifestam-se muito mais quando relacionados com questões pessoais e emocionais de relações familiares, de amizade ou amorosas.

Mas lembro-me perfeitamente do dia da apresentação do trabalho de Géneros Jornalísticos.

Eu estava um caco. Sentia-me dormente. As coisas aconteciam à minha volta e eu sentia-me alienada de tudo. Estava constantemente à beira de um ataque de choro. Engolia em seco, respirava fundo. Sentia a ansiedade e o ataque de pânico ali à flor da pele.

Lembro-me de receber um abraço forte da Tânia (que fazia parte do meu grupo) e de me tentar recompor.Fiz a apresentação toda, firme e segura, sem deixar sair o turbilhão de coisas que sentia. 

Lembro-me de me sentir orgulhosa e não me lembro de mais nada desse dia...


Como é que ter ansiedade e depressão impactam as tuas relações interpessoais?

A minha cabeça não para, o meu cérebro não desliga... Todas as atitudes, coisas ditas ou feitas que de alguma forma fogem ao padrão acionam o motor e surgem as dúvidas todas. "O que é que quis dizer com aquilo?", "porque é que disse aquilo?", "será que ficou chateadx?", "será que fui bruta?", "devia ter X e não Y", por aí fora... E consigo lembrar-me de praticamente todos os momentos (passados anos) em que me questionei desta forma - Situações específicas que provavelmente só me ficaram na memória a mim e não aos outrxs.

Consegues ter um dia-a-dia normal? Alguma vez não conseguiste? Como é que a ansiedade e a depressão impactam o teu quotidiano?

Agora sim, agora consigo ter um dia a dia normal, aprendi a lidar com a minha ansiedade, aprendi a controlar os meus ataques de pânico e o último que tive deve ter sido para aí há 3, quase 4 anos.

Tomo medicação e isso foi algo com que aprendi a lidar também.

Fazes terapia regularmente?

Sim. Antes de tudo isto, em pequena (tão pequena que de pouco ou nada me lembro) já tinha sido acompanhada por uma psicóloga.

Por isso, foi a primeira a quem fui quando tudo isto se começou a manifestar. Mas não estava a resultar e não estava a conseguir ajudar-me. Entretanto fui a um médico de clínica geral, quase um médico de família que me conhecia, mas também não estava a resultar e aí já metia medicação. Deixei bem claro que não queria medicação que alterasse o meu estado e o meu comportamento. À terceira foi de vez e encontrei o psicólogo que ainda hoje me acompanha e que me aconselhou a psiquiatra que me passou a medicação que atualmente tomo.

Sentes que existe um estigma associado a doenças mentais? Já o sentiste pessoalmente? Em que circunstâncias?

Sim, sem dúvida alguma. É a primeira vez que falo assim disto, poucas são as pessoas que me conhecem e que sabem desta parte de mim, bem agora vão ficar a saber. Algumas sabem algumas partes, apenas 2 ou 3 sabem de tudo. Só a família imediatamente mais próxima me acompanhou em todo este processo.

Lembro-me de não haver muita vontade de que isto se soubesse por outras pessoas.

Da tua parte ou da tua família?

Havia alguma pressão por parte da família. Não ter comprimidos à mostra, coisas assim... Não sei se o faziam de forma consciente.

Muita gente (especialmente neurotípicos) tem tendência a definir a ansiedade e a depressão em termos bastante genéricos e simplistas. "Estar ansioso é estar nervoso e ter depressão é estar triste", mas estas doenças vão bem além disso. Como é que as definirias?

Ui... Definitivamente não é simples... E tive que lidar com esse tipo de opiniões bem de perto...

Que era só pensar positivo e afastar esses pensamentos. Se estava triste tinha que me pôr feliz. Que se tinha pensamentos maus, tinha que os afastar. Como se bastasse estalar os dedos...

Não creio que haja resposta fácil para o que é a ansiedade, manifesta-se de forma diferente nas pessoas e tem causas diferentes... Acho que é algo que faz parte de mim e com o qual tive que aprender a lidar. Definitivamente é algo que gera cansaço e frustração e que precisa de ser encarado com seriedade para que não se desenvolva para algo mais grave e menos controlável... Passei pela fase do "Porquê eu?" e pela fase do "Preferia que fosse algo físico!"

Os pensamentos intrusivos para mim foram o mais difícil de lidar... Chateava-me comigo mesma, quase como que numa discussão interna "mas porque é que te lembraste disto agora?"… Tentava perceber se aqueles pensamentos eram vontades. Porque é que eu pensava na faca e consequentemente tinha medo da faca? Porque é que eu pensava na janela e consequentemente tinha medo da janela? Significava que eu queria magoar-me com a faca? Significava que eu queria atirar-me da janela? Eu tentava analisar os meus pensamentos e durante muito medo tinha medo de mim própria. Um medo irracional de algo escapar ao meu controlo e fazer algo que eu não queria. Mas então se não queria porque é que pensava? E ficava neste loop...

Achas que a sociedade está preparada para lidar com problemas do foro psicológico? Porquê?

Acho que cada vez mais são feitos esforços para ajudar a lidar com estas questões. Existem inúmeros projetos que vão surgindo, quer online quer presencialmente, e as ideias vão-se desmistificando. No entanto, principalmente em relação às gerações mais velhas, sinto que ainda há um longo caminho a percorrer. Perdura a ideia de que se é fraco de cabeça e de que o acompanhamento psicológico é uma fraude...

Trabalho na Divisão de Juventude da Câmara Municipal de Setúbal e de 2020 para cá temos apostado em projetos que incidem sobre este tema, como o Ciclo de Debates (destinado às escolas e agora durante o covid, ao público jovem em geral) e o Bicho de 7 Cabeças (conversas simples com uma psicóloga de Setúbal.  Existem também já inúmeras redes sociais dedicadas a esta temática e acho que isso também ajuda de alguma forma.

Que mensagem gostarias de deixar a quem, tal como tu, esteja a passar por estes problemas?

Acho que é importante saberem que não estão sozinhxs. E não desistam de vocês e da vida. Há dias em que o desespero se faz sentir, mas agarrem-se ao que puderem. Eu fiz uma promessa à minha irmã e em dias mais difíceis foi a isso que me agarrei.

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