E quando quem amamos tem depressão? - Joana Calado - Entrevista

 Muitas vezes abordamos o tema da depressão da perspetiva de quem dela sofre. Mas como é viver com uma pessoa com depressão? A Joana Calado conta-nos nesta entrevista.


Numa primeira conversa que tivemos, contaste-me que a tua mãe tem depressão. Quando é que lhe foi diagnosticada?

A minha mãe tem uma depressão há cerca de 22 anos. Foi causada pela morte do meu avô. Diagnosticada a sério e começar tratamento, foi há cerca de uns 5/6 anos. Falamos de cerca de 18 anos em que a minha mãe sabia que tinha uma depressão, passavam-lhe a medicação, e ao fim de algum tempo ela começa a sentir-se melhor e deixava de a tomar. Portanto, podemos dizer que diagnosticada e com tratamento, 5/6 anos.


E neste momento ela faz o tratamento e o acompanhamento regular, é isso?

Sim. Há 5/6 anos ela começou a ser seguida em psiquiatria, começou a ter medicação, consultas regulares. Neste momento, está controlada. Consegue fazer uma vida normal, ao contrário do que acontecia antes de começar o tratamento.

Já te tinhas apercebido de que alguma coisa não estava bem, ou o diagnóstico foi novidade para ti? Como reagiste?

Nós sabíamos que a minha mãe tinha uma depressão. Aliás, nós vivíamos com ameaças de suicídio permanentes da parte dela. Passámos por situações muito complicadas, ao ponto de a minha mãe ter posto uma faca ao pescoço. Nós sabíamos que aquele problema existia, e tentámos, por diversas vezes, dizer-lhe, “precisas de acompanhamento” – e ela não aceitou durante muito tempo. Foi preciso, numa discussão muito agressiva entre nós, eu dizer-lhe “vai-te tratar, porque tu tens um problema!”. Porque eram discussões permanentes, vivíamos em constante sobressalto porque ela dizia que se suicidava. E tendo em conta que, também o meu avô se suicidou… Deixa-te sempre um bocadinho de pé atrás. Não é uma questão hereditária, mas pensas sempre quer há uma possibilidade.

Que impacto teve/tem em ti?

Eu comecei a ter crises de ansiedade, por volta dos 15/16 anos. Porque nunca sabia o que ia encontrar quando entrasse em casa. A determinada altura, comecei a auto mutilar-me. Deixei de sentir. Como tinha tantas discussões com a minha mãe, cheguei ao ponto em que a minha mãe dizer-me, “o maior erro da minha vida foi ter ido para a frente com a gravidez, devia ter abortado”, ou dizer-me, “o jantar é batatas com atum”, era-me indiferente. Eu comecei a sentir necessidade de sentir alguma coisa. Passei 3 a 4 meses em que, cada discussão que eu tinha com a minha mãe, era um corte que eu fazia.

Isto se calhar fez de mim uma pessoa muito mais atenta a determinados sinais, muito mais consciente do que é uma depressão… Mas claro que deixa mazelas. Há sempre coisas que ficam.

Alguma vez sentiste aquela sensação de impotência de a quereres ajudar e não conseguires? 

Senti isso várias vezes ao longo da minha vida, como deves calcular. Não é das melhores sensações para teres quando tens 15/16 anos. Estás naquela fase da adolescência, estás a formar a tua personalidade, estás a passar por todas essas mudanças… A determinada altura, no meio de uma discussão, vês a tua mãe meter uma faca ao pescoço e o teu pai a metê-la no chão para lhe tirar a faca – isto é uma cena extremamente agressiva! Das piores sensações, para além da impotência – porque tu queres ajudar aquela pessoa, mas aquela pessoa não quer ser ajudada, e tu já tentaste todas as maneiras possíveis, que só falta pegá-la pelos cabelos e levá-la a um psiquiatra – foi a minha mãe conseguir ter a presença de espírito de chegar ao pé de nós e pedir-nos desculpa. É horrível. É um pedido de desculpas que é horrível ouvir. Ela sabe o impacto que teve e tem noção do que nós passámos por causa disso. Mas tu quereres ajudar uma pessoa e não conseguires porque ela não quer, e depois perceberes, “okay, finalmente ela está a ser ajudada e estamos a conseguir superar isto, e agora, sim". 

"Ela tem noção do que fez e do que isso causou na nossa vida familiar”… Eu não estou a culpabilizar a minha mãe! Mas durante muito tempo, ela não tinha noção de como aquilo nos afetava. Ela sabia que tinha aquele problema, não queria aceitar e nem sequer notava que isso tinha um impacto negativo na nossa vida familiar. Quando a pessoa tem uma depressão, fecha-se muito no mundo dela e naquilo que sente – esquece-se do que está à volta e de que as pessoas querem ajudá-la. Isso causa mazelas, incómodos. E o meu pai é um grande homem, porque não há muitos que passem por aquilo que ele passou e que fiquem ao lado das mulheres. O meu pai nunca, em momento algum, equacionou, sequer, deixar a minha mãe. E, hoje em dia, quando notamos alguma diferença no comportamento dela, o meu pai é o primeiro a dizer, “andas a passar muito tempo em casa, vamos sair”.

Mas naquela altura em que a minha mãe não queria ser tratada, não queria aconselhamento, nem nos ouvia, isso é muito complicado de gerir. Porque tu pensas, “okay, e agora eu faço o quê? Deixo isto acontecer?”. Já não tens opções. Todas as opções que tu tinhas, esgotaram, porque a pessoa não quer ajuda.

Muitas vezes - e claro que, compreensivelmente - as atenções são viradas para a pessoa que sofre a doença. Temos tendência a dar pouca atenção à quem a rodeia. Sentes o mesmo? Achas que deveria existir terapia/acompanhamento regular e acessível também para quem acompanha a pessoa?

Nós focamo-nos sempre muito na pessoa e esquecemo-nos do que está à volta dela. Mas não só em relação à depressão, como em relação a outras doenças. Os cuidadores são muito importantes. E nós não percebemos que no momento em que não houver um cuidador, aquela pessoa pode ficar desamparada. Ser cuidador não é fácil e estar junto a uma pessoa que tem uma depressão, também não é fácil. No nosso caso, tivemos acompanhamento por parte da psiquiatra da minha mãe, ela própria quis falar connosco. Nós acompanhamos sempre as consultas dela – porque ela também acha importante que nós estejamos presentes porque somos a principal força ativa na vida dela. Isto foi muito importante: o sentirmo-nos incluídos. Porque ao fim de tantos anos sem haver uma solução, nós, naquele momento, somos parte da solução. Eu acho que quem acompanha uma pessoa com depressão quer muito perceber isso, que há uma solução e que está a fazer parte da solução.

Mas, de facto, nós esquecemo-nos muito dos cuidadores. E podemos estar aqui a ignorar outros problemas do foro psicológico que muitas vezes surgem nos cuidadores, e que nós simplesmente ignoramos porque só estamos focados na pessoa que tem a depressão, não sabendo até que ponto o cuidador não está também a desenvolver uma depressão.

Sentes que estamos preparados, enquanto sociedade, para lidar com pessoas com psicopatologias?

Não. Claro que não. Enquanto sociedade, ainda achamos que uma depressão ou qualquer outra psicopatologia não é uma doença, porque tu não vês. Tu olhas para a minha mãe, a minha mãe é uma pessoa divertida. Tu não sabes que a minha mãe tem uma depressão. Isto passa completamente ao lado da maioria das pessoas. E mesmo a nível profissional, as empresas não estão preparadas para ter um funcionário que diga “eu vou estar um mês de baixa porque não consigo trabalhar”. Porque tu olhas para a pessoa, e a pessoa está bem. Ninguém disse que aquela pessoa está doente. Enquanto sociedade ainda achamos que psicopatologias não são doenças. Acho que é importante fazermos a diferença, porque é importante que a sociedade e, principalmente, as pessoas de cargos elevados – porque é aí que muitas vezes está o problema, perceber que, eu quando tenho uma crise de ansiedade, não estou a fingir. Eu estou a hiperventilar, estou a chorar, e se me perguntarem porquê, não sei. E as pessoas olham para ti e acham que és maluquinha. Precisamos de desmistificar isto. Precisamos que, cada vez mais pessoas, cada vez mais empresas, estejam alerta para sinais de depressão, e que aceitem isto. 

Aceitem que uma pessoa que tem uma depressão, é o mesmo que uma pessoa que tem um pé partido – precisa de cuidados. Precisamos de desmistificar a questão de que quem tem depressões, quem tem crises de ansiedade, quem tem crises de pânico… é maluquinho. A pessoa tem uma doença! A diferença é que é uma doença que não é visível, é um tratamento que não é visível. Se tens um cancro, as pessoas à tua volta também não veem que tu tens um cancro, mas começas a fazer tratamento, começa-te a cair o cabelo, começas a ter efeitos secundários… Com uma depressão, não se vê. Embora haja pessoas com quem eu já convivi ao longo da minha vida, que eu aos poucos fui percebendo, “okay, esta pessoa se calhar tem uma depressão”. Mas, regra geral, não se vê. E não podemos continuar a ser este tipo de sociedade. Este tipo de sociedade que faz distinção entre diferentes tipos de doença. As pessoas precisam de tratamento – e se tiverem que faltar ao trabalho porque precisam de ir a uma consulta de psiquiatria, não é vergonha nenhuma! Não tens que fingir, mentir. As empresas precisam de saber que as pessoas têm este tipo de doenças, e precisam de estar alerta.

Que mensagem gostarias de deixar a pessoas que, tal como tu, veem pessoas que amam a sofrer de problemas como ansiedade, depressão, ou outros?

Não desistam nunca! Porque a pessoa que está ao vosso lado vai precisar de ajuda e vai, em todos os momentos do processo, precisar do vosso apoio e, muitas vezes, vai precisar que no fim de um dia mau, cheguem lá e digam “estou aqui para ti”. Deem-lhe um abraço, “estou aqui para ti, vamos superar isto juntos”. E tenham muita atenção a sinais de alerta. No meu caso correu bem, a minha mãe nunca chegou a vias de facto. Mas há casos em que as pessoas não notam, não veem. E a depressão mata, talvez porque não percebemos, não olhamos com olhos de ver para as pessoas, não percebemos que aquela pessoa está a precisar de ajuda. E às vezes estamos tão saturados da situação, ou por não vermos uma solução, que acabamos por desistir.

Portanto, não desistam das vossas pessoas, abracem-nas, digam que gostam delas, que as coisas vão melhorar. Porque isto é uma prova de superação. Eu costumo dizer que curar uma depressão, não é uma prova de velocidade, mas sim uma maratona. Não interessa quanto tempo demoras a fazê-la, mas sim chegares ao fim. Aguentares a prova de resistência. Independentemente de tudo, estares ao lado da pessoa que te é querida e, muitas vezes, aconselhar a pessoa e fazê-la procurar ajuda. Fazê-la perceber que tem um problema e que há solução. Se passam por isto, se têm uma pessoa que tem problemas do foro psicológico, foquem-se na solução.



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