"Sou uma pessoa não-binária" - Parte 2 - Azul - Entrevista

 Azul é uma pessoa não-binária – não se identifica com o género masculino, nem feminino. Nesta entrevista, revela-nos os principais desafios que enfrenta no sei dia-a-dia, num mundo em que quem foge ao padrão de género não tem a vida facilitada.

Quando percebeste que eras não-binárie?

Apesar de usar o pronome neutro, eu me identifico como não-binário, por duas razões. A primeira é para nomear a perceção que tenho de mim e da realidade, e a segunda razão é para afirmá-la como uma perceção que vai para além do binário. Nos últimos quatro anos da minha vida, entrei num caminho de autoconhecimento onde, pouco a pouco, fui questionando e percebendo toda a construção da minha pessoa, até me encontrar debaixo da mascara e me assumir. Percebi-me nos primeiros meses da pandemia.

E quando percebeste, foi fácil para ti aceitar que não te "encaixavas" num padrão de género, ou houve alguma espécie de luta interna?

Eu ainda não me aceitei por completo. Eu tenho medo. Cresci a servir o outro, em troca de amor e aceitação. A partir do momento que me assumi como não-binário, tenho vindo a construir um espaço onde posso existir nesse mundo de forma autónoma. Há um lado meu que anseia esse poder de criação e destruição, há outro lado que deseja não estar nessa posição porque é demasiado violento.

Quais são as principais dificuldades e desafios que enfrentas na tua vida, enquanto pessoa não-binária?

Eu vejo a questão de género e sexualidade como uma questão racial. A construção moderna do homem e da mulher é uma construção do homem branco da classe dominante. Neste sentido, a linguagem binária, desta cultura eurocêntrica, me invisibiliza, a cisnormatividade obriga-me a performar um papel para sobreviver em certos espaços ou adquirir certos direitos. Eu tenho como desafio me construir em dois sentidos: destruir o que internalizei da ideologia do homem branco, e me construir pela autonomia, onde também produzo autonomia nas relações que estabeleço, principalmente, na construção de uma ação coletiva contra esta sociedade opressora.

As pessoas costumam respeitar os teus pronomes e a tua identidade de género no geral? O que costumas dizer a quem não o faz?

As pessoas cisgénero estão confortáveis com a linguagem discriminatória que aprenderam e que reproduzem, fazem parte do seu privilégio cis, é normal que a maioria não entenda a necessidade de uma linguagem neutra para validar as pessoas trans não binárias, ou pessoas cis que também adotam o pronome neutro para uma linguagem inclusiva. Eu não acredito na culpa ou no julgamento, cada reação é válida e pode resultar de várias condições que desconheço sobre mim e sobre o outro. Acredito, porém, na responsabilidade. E adotar a linguagem neutra é um compromisso de quem adota e de quem se alia, por entender o impacto social que a linguagem discriminatória tem, mas essa responsabilidade não é uma questão de escolha, assume quem tem capacidade para assumir. Há pessoas que me acolhem, pessoas que se tornam um espaço seguro onde posso exprimir livremente, há outras pessoas com quem isto não será possível, por mais que elas se digam revolucionárias ou amigas, como é o caso de quem não o faz.

Acontece-te teres que esconder a tua identidade de género? 

Eu nasci num seio familiar violento, cresci num espaço onde não havia afeto e comunicação, ditavam que eu não poderia contar nada. Verbalizar o que sinto foi necessário para chegar até aqui, então há situações onde tenho que esconder a minha identidade, nos espaços masculinos que não me transmitem segurança, ou numa entrevista de emprego para não ser alvo de discriminação

Na tua opinião, que conquistas ainda faltam às pessoas não-binárias?

Eu não me sinto confortável em falar pela comunidade, não me sinto confortável em falar por ninguém além de mim, porque cada pessoa é construída em condições diferentes da minha e isso traduz em diferentes necessidades e desejos que desconheço. No entanto, me vejo como um eu coletivo, onde existo como parte de um todo, então só terei autonomia se houver uma autonomia coletiva. Quando digo autonomia, não é no sentido de autossuficiência mas eu me relacionar comigo e com o outro, seja alguém da nossa espécie ou com outros seres conscientes, com a terra ou com o universo, sem estabelecer nenhuma relação de poder e sem permitir que estabeleçam uma relação de poder sobre mim. Eu não sei se enquanto sociedade chegaremos a esse estágio de consciência, mas acredito que para isso se tornar realidade precisamos de uma ação anti-capitalista, anti-especista, anti-racista, anti-sexista, rejeitar qualquer forma de colonização do outro. E reconhecer as pessoas não-binárias e se comprometer com uma linguagem que nos inclua, é o primeiro passo para unirmos forças e transformar a realidade.

Até que ponto a ignorância em relação a estas questões pode ser nociva para quem não assume um padrão de género?

Eu já vejo a ignorância em relação a estas questões como nociva porque entendo o individuo como produto da realidade sócio-histórica em que se encontra inserido. Então quando uma pessoa é construída sob um lugar de privilegio numa relação de poder, entendo sua ignorância como uma condição para a manutenção da sua identidade. Por isso, as pessoas brancas para entender sua branquitude precisam de perceber as pessoas não brancas, o mesmo se aplica aos homens cis em relação às mulheres, homens trans e pessoas não binárias. Para se conhecer precisa de conhecer o outro, porque numa relação de poder as identidades que são construídas no plano de dominação e submissão estão dependentes um do outro.

Que mensagem gostarias de deixar a pessoas que se tenham descoberto não binárias recentemente?

É talvez a pergunta mais difícil para mim, mas quero desejar uma boa viagem nesse encontro e reencontro consigo mesme. Não somos apenas os nossos traumas, medos e inseguranças. Também somos os bons momentos que colecionamos, a sabedoria que adquirimos. Que usemos o nosso poder de criação e destruição onde eles não tem imaginação.

Comentários