"Sou uma pessoa não-binária" - Parte 1 - Aan Gomes - Entrevista

Aan Gomes tem 28 anos e é uma pessoa trans não-binária. Nesta entrevista, falamos de não-binarismo, disforia, ativismo político e direitos LGBTQIA+.


Se tivesses que explicar o não-binarismo a quem nada saiba sobre entidade de género, o que dirias?

Género é uma construção social, ou seja, algo que vamos construindo ao longo dos anos e através das nossas experiências sociais. Não nascemos mulheres, homens ou não-binários. Nascemos humanos, bebés e vamos ganhando a nossa identidade (de género e outra) observando o outro e experimentado. Muitas vezes o género que nos foi atribuído à nascença (de acordo com a genitália aparente), é aquele com qual nos identificamos posteriormente. Contudo, acontece que algumas vezes isso não se sucede. Dentro de nós surge uma desconexão com a identidade que nos impuseram. Não nos sentimos mulheres só por termos uma vagina ou homens só por termos pénis. Acrescenta-se a esta situação o facto do próprio género ser um espectro. Ou seja, não existe só mulher ou homem, esses são somente extremos.

As pessoas que não se identificam com um ou outro chamam-se pessoas não-binárias, ou seja, pessoas que não se identificam com o binário (homem/mulher). Este não-binarismo têm várias formas e não há uma forma única de ser-se não-binário. Uma pessoa pode-se expressar de forma aparentemente binária e não o ser. E vice-versa. A única forma de saber-se o género de uma pessoa é quando a própria pessoa partilha o seu género com os outros. 


Foi durante a pandemia que percebeste que eras não-binário. Porque é que achas que só te apercebeste nessa altura?

Eu já sei que sou não-binário há cerca de dez, onze anos. Mas a pandemia acerbou a minha disforia de género, especialmente no que toca ao peito e no que quero do meu futuro. Acho que o isolamento e tempo para autorreflexão permitiu-me ter a clareza, conhecimento e coragem para começar a dar os pequenos passos para um futuro em que eu me reveja verdadeiramente ao espelho.

Como te sentiste quando percebeste que o eras?

Para mim foi mais um clique. Desde criança que sempre soube que não era igual às outras crianças. Não tinha era a linguagem adequada. Quando ouvi a palavra não-binário e a sua definição foi como se todas as pecinhas se encaixassem no puzzle. Havia finalmente uma palavra que significava a minha experiência. E não estava sozinho! Foi alegria e ao mesmo tempo incerteza e medo.

E como é que tiveste acesso a essa informação?

Em 2010/2011 estive pela primeira vez no Acampamento de Jovens do Bloco de Esquerda. Participei em sessões sobre questões LGBT e aí conheci um rapaz trans que me explicou algumas coisas que eu não sabia até aí (inclusive sobre pessoais intersexo e assexuais).




Numa primeira conversa que tivemos, disseste-me que até existir alternativa, tens preferência por pronomes masculinos. É por ti, ou por uma questão de "facilitar a vida" a quem lida contigo, para que não tenha que usar o chamado género neutro, já que somos quase obrigados a ser homens ou mulheres?

As duas coisas, dado que na fala não existe o neutro. Os pronomes femininos são pequenas facas que cortam a pele sempre que eu sou referido dessa forma. De certa forma a utilização de pronomes masculinos em português é um "facilitar da vida" como referes, porque não é de todo o ideal. Em inglês uso they/them e nem nunca pensei em usar o masculino. É o natural para mim e gostaria de trabalhar para que um neutro existisse também em português. Há algumas secções de ativismo que usam o "e" como alternativa, e eu acho que é por essa via que poderemos caminhar. É, pelo menos a meu ver, mais orgânica, já que existem sotaques portugueses (como o penichense e o nazareno) que transformam as suais vogais finais em "e".


As pessoas que te rodeiam respeitam a tua identidade de género? No meio social, profissional e familiar?

No meio familiar só a minha mãe sabe. Ela aceita-me mas ainda não usa os pronomes e nome corretos. No meio social (e político) maior parte já sabe e usa os meus pronomes corretos e nome correto. Os que não usam foi porque eu nunca fiz um coming out claro então é um intermédio um pouco estranho. A nível profissional é complexo. Sendo estafeta da Glovo isso não dá oportunidade para essa conversa. E mesmo na escola, como estudo em italiano, é um pouco complexo explicar o que sou, mas tento dar o meu melhor.


A disforia manifesta-se de formas diferentes em diferentes pessoas. Como é para ti? Como te sentes?

Sinto uma desconexão total com o meu peito (algo que vim a descobrir durante a pandemia), um desconforto brutal quando tenho o período, especialmente com os inchaços inerentes e a falta de definição muscular (apesar de estar no ginásio). Deixa-me ansioso. Tenho uma visão especifica de como gostaria que o meu corpo fosse - expectativas realistas, isto é. Vestir uma camisa e depois vê-la a abrir-se por si só porque tenho o peito demasiado grande é frustrante. Sempre quis poder estar de tronco nu.




A teu ver, que ainda falta à comunidade trans conquistar em Portugal?

O SNS é lentíssimo a dar resposta à comunidade trans. Faz falta Clínicas de Género distritais que possam dar resposta às necessidades de cada individuo. Falta remover a marca de "sexo" nos documentos oficiais. Falta a proteção dos jovens trans nas escolas e universidades, no desporto escolar e nas casas-de-banho. E, principalmente, falta uma campanha de educação e sensibilização da população portuguesa.

Sei que pertences ao BE. Porque é que, enquanto pessoa trans, esse foi o partido que escolheste para te representar?

É o único partido com representatividade parlamentar que defende ativamente os direitos Trans e direitos LGBT em geral. O Bloco esteve sempre na frente da luta pela lei de identidade de género, pelo casamento homossexual e pela adoção e co-adoção.

Fala-me um pouco do teu ativismo. Participas em associações de direitos LGBTQIA+? O que fazes?

Participei nalgumas reuniões aqui e ali, mas durante muitos anos o meu ativismo centrou-se nas questões estudantis. Afastei-me um pouco do ativismo enquanto estive em Nápoles e agora com a pandemia é um pouco difícil participar tão ativamente quanto gostaria. Mas este ano voltei a estar mais ativo no Bloco, especialmente no meu distrito e com os Jovens de Leiria. E aí também trabalhamos estas questões e eu sou uma das poucas pessoas abertamente trans no grupo. Pós-pandemia gostaria de ser mais ativo.

Que mensagem gostarias de deixar a pessoas que recentemente se tenham "descoberto" trans, não-binárias, LGBTQIA+?

Somos todos diferentes, com experiências diferentes e necessidades diferentes. Mas estamos cá e somos mais, muitos mais, do que a sociedade pretende mostrar. Não estás só. O meu conselho: pesquisa associações e movimentos perto de ti: procura apoio e participa na construção de uma comunidade cada fez mais forte que luta pelo direito de todxs. Porque direitos trans são direitos humanos. E tu mereces viver com dignidade e respeito.








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