O meu espectro de Borderline - Entrevista

Desafiada por algumas pessoas amigas, decidi falar sobre o meu espectro de Transtorno de Personalidade Borderline (TPB). A ansiedade e a depressão foram-me diagnosticadas em 2013, mas o TPB apenas em 2018, quando passei a ser acompanhada numa clínica privada. Como refiro ao longo da entrevista, não tenho a doença, mas sim alguns comportamentos que se enquadram no espectro. Quero agradecer à Inês Ramalho, que me entrevistou com a maior das sensibilidades sobre o tema.


Filipa, uma das tuas grandes bandeiras de ativismo é a promoção da saúde mental e a consciencialização para as doenças psiquiátricas. Como é que percebeste que o TPB era uma realidade na tua vida? Quais foram os primeiros sintomas e experiências que te fizeram aperceber desta condição?

Pelo que tenho vindo a perceber ao longo dos tempos, e mesmo nas consultas que tive com a minha psicóloga e com a psiquiatra, nem sempre tive TPB. Foi um problema que me foi diagnosticado por volta de 2018, quando passei finalmente a ser acompanhada no privado, por uma psiquiatra que me via regularmente. Aparentemente surgiu devido a algumas coisas que passei na minha na minha infância e adolescência, e que não foram resolvidas na altura. Os primeiros sintomas que notei foi um medo extremo do abandono, cheguei a uma altura em que achava que todas as pessoas à minha volta me iam deixar eventualmente, um medo extremo de perder os meus pais, ao ponto de pensar nisso todos os dias, o facto de me apegar exageradamente a pessoas que mal tinha acabado de conhecer. Alguns comportamentos agressivos. Estes foram comportamentos que eu achei que não eram normais na ansiedade e na depressão, que já me tinham sido diagnosticadas. E com um acompanhamento mais regular, começámos a perceber que embora eu não tenha realmente TPB, tenho um espectro da doença que se manifestou nesses comportamentos.

Quando recebeste o diagnóstico, qual foi a estratégia utilizada (farmacologia, psicoterapia ou outras abordagens)? 

Eu já tomava anti-depressivos e ansiolítcos para haver um equilibro entre as fases depressivas e as fases de euforia (também características do TPB), mas nessa altura foram acrescentados os estabilizadores de humor, que honestamente foram péssimos porque só me deixavam irritadiça. Em relação às relações interpessoais é que não houve propriamente uma estratégia e isso acabou por me prejudicar algumas vezes com algumas pessoas, porque ninguém está preparado para lidar com uma bomba-relógio em pessoa. E na altura do diagnóstico era isso que eu era. Constantemente prestes a explodir. Essa estratégia tive que aprender sozinha, com o tempo, e a perceber a doença. 


A regulação emocional desempenha um papel fundamental na gestão do TPB e na qualidade de vida de quem (con)vive com esse transtorno. Como é que foi para ti este percurso de descoberta e ajuste da/na relação com o Outro a partir do momento em que te foi confirmado o diagnóstico? 

Honestamente, posso dizer que desde que fui diagnosticada, até há relativamente pouco tempo (o ano passado, vá), as minhas relações interpessoais foram um desastre. Quando fui diagnosticada comecei a ler muito sobre a doença e sobre o conceito de as pessoas com TPB terem uma "favourite person" - que é basicamente a pessoa a quem recorrem SEMPRE que têm uma crise. Eu achei isso insólito, mas ao mesmo tempo não me apercebi que eu própria tinha uma favourite person - um dos meus melhores amigos que leva comigo desde 2018, aturou crises de choro, crises de raiva, fases em que eu me sentia com vontade de morrer, tudo. A minha relação com essa pessoa em especifico acabou por se tornar numa amizade um pouco tóxica, porque era o eu precisar dele e ele não poder lá estar para mim sempre. Eu acabava por sufocar as pessoas. Por outro lado, e com o medo de me sentir sozinha, acabei por me envolver em relações que duravam coisa de um mês, porque eu me envolvia com a pessoa num momento de carência, e no momento a seguir já não queria, nem conseguia estar com ninguém. Isto aconteceu pelo menos duas vezes.

Com a mudança da medicação e com muito, muito controlo pessoal, eu consegui take a step back e pensar que, primeiro: o meu amigo não tinha que estar disponível para mim 24/7 e, segundo: as pessoas não têm culpa que eu tenha TPB, logo eu não posso envolver-me em relações à toa e deixar a pessoa no momento a seguir. Isto foi com medicação, mas com muito esforço pessoal também.

De há um tempo a esta parte consegui ir equilibrando as minhas relações. Já não tenho uma favourite person, o que é ótimo, e consigo perceber quando devo ou não avançar para uma relação amorosa.

Referiste que "ninguém está preparado para lidar com uma bomba relógio" e que "as pessoas não têm culpa que eu tenha TPB". Estas duas ideias contrapõem-se muito na mente de quem vive com este transtorno e, de certa forma, geram confrontos internos que são complicados de gerir. Na tua opinião, de que forma o Outro e a sua reação impactam no portador de TPB e no seu medo de abandono e vazio interior?

Há sempre aquela ideia de que ninguém gosta e ninguém quer uma pessoa carente, uma pessoa clingy, pegajosa. Quando conhecemos alguém, não é esperado que nos apeguemos tão facilmente a essa pessoa. E quem tem TPB faz isso, apega-se. E isso não é um comportamento "normal" ou "aceitável" para a maioria das pessoas. As pessoas acabam por se afastar porque não estão preparadas para lidar com essa faceta de dependência de quem tem a doença. E se isso acontece, pessoa após pessoa, caso após caso, começa a deixar marca. O facto de, por exemplo, uma pessoa que conheci há pouco tempo se afastar de mim, faz-me pensar que toda a gente que me rodeia o vai fazer, em fases em que estou pior. Às vezes basta uma demora numa resposta a uma mensagem, uma mudança de tom, que ficamos logo em pânico e a pensar "ok, esta pessoa odeia-me". Por outro lado, eu sei que lidar com uma pessoa com TPB é quase como pisar em cascas de ovos, porque a qualquer momento há uma crise despoletada por uma coisa mínima. 

E na tua ótica: na questão dos afetos, de que forma uma pessoa com TPB pode experienciar relacionamentos saudáveis e duradouros? 

Ufff. Difícil. Acho que em primeiro lugar, existe uma coisa muito importante a reter: ter TPB não pode ser - e não é - desculpa para todo e qualquer comportamento tóxico, não é desculpa para o usar e deitar fora "porque tenho borderline" (e contra mim falo) - é essencial a pessoa com borderline conseguir fazer esse distanciamento de si própria e perceber "isto não está certo e a minha doença não desculpa tudo". Dando esse passo, é essencial perceber que existem sim pessoas que gostam de nós pelo que nós somos e que nós não somos a nossa doença, nem toda a gente nos vai abandonar. Há quem fique anos, ou mesmo para sempre - isto consegue-se com apoio, com validação (é muito importante para nós), com um "estou aqui", com um "gosto de ti", com um "não te vou deixar". Mas para haver um relacionamento saudável e duradouro, e como em qualquer relação, o trabalho é dos dois. Quem se relacionar comigo tem que saber que eu tenho borderline e que isso em algum momento vai afetar a nossa relação. Tem que saber que eu tenho fases depressivas e eufóricas, tem que saber que já houve dias em que eu não queria viver. Acaba por ser um trabalho das duas pessoas envolvidas. É um equilíbrio muito muito difícil, que sinceramente eu ainda não encontrei desde o meu diagnóstico, mas sei que vou conseguir. Porque sei que há alguém ai pronto para me receber como um todo, de braços abertos. 

E no âmbito profissional, quais foram as experiências mais marcantes do ponto de vista de desenvolveres a tua rotina de trabalho diária com TPB e que aprendizagens retiras delas?

Acho que o âmbito profissional foi o único que não foi afetado com o meu TPB, nem com a minha ansiedade (embora me tenha sido recusada uma promoção com base neste argumento!), nem com a minha depressão. Até porque em momentos de crise eu prefiro tirar baixa e afastar-me do que estar a trabalhar e a sofrer, e a fazer os outros sofrer. Nunca prejudiquei o meu trabalho devido à minha saúde mental, mas o contrario já aconteceu.

Acreditas que existe preconceito (ainda que mais ou menos velado) dentro das organizações em relação aos trabalhadores que são portadores de transtornos psiquiátricos?

Existe. A verdade é que se estiveres com gripe a tua ausência é válida, mas se estiveres num dia depressivo em que não te consegues levantar da cama, provavelmente não vais ter justificação para a tua falta e ninguém vai fazer nada em relação a isso. Se partires uma perna vê-se, mas se estiveres num dia em que te queres atirar da ponte não interessa desde que não estrilhes muito. Como disse anteriormente, não me disseram diretamente "tens ansiedade, não podes ser promovida", mas disseram-me "precisas de encontrar estratégias para resolver a tua ansiedade e dessa forma conseguires desempenhar melhor a função" - mas nunca me diriam "precisas de encontrar estratégias para resolveres a tua asma e dessa forma conseguires desempenhar melhor a função", por exemplo. Em trabalhos anteriores, cheguei a mentir para faltar, porque eu própria tinha vergonha de dizer o que realmente se passava.


Que conselho daria a Filipa de 2021 à Filipa de 2018 e a todxs xs Filipxs que têm o TPB como uma realidade nas suas vidas?

Filipa, tu vens em primeiro lugar. A tua saúde mental está primeiro que tudo. Se um mês de baixa é pouco, tira dois. descansa. Não pares de tomar a medicação por iniciativa própria. Não tens que rastejar atrás das pessoas. A vida tem coisas boas e tens que continuar a viver POR TI, não pelos outros. Tens amigos que querem saber de ti e, por favor, não te isoles 💜










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