Depressão e política ou os novos subterrâneos da liberdade


 Texto de Bruno Góis, Investigador e Ativista Político


1. A Joana levantou talvez os últimos dez euros da conta, mas não quis ler o estrato bancário. E ainda é dia quinze. Há lá umas coisas em casa, tem de dar para se governarem.

A Francisca vai esquecer-se de pedir à mãe o dinheiro para a cartolina que o professor pediu.

O Zé não olha para o relógio e vai tardar horas até pôr os pés no chão. Na cama, permanece longe das previstas não-respostas às candidaturas de emprego e das idas inúteis mas obrigatórias, de porta em porta, para dar as aparências de procura ativa de emprego.

No mesmo bairro, há um café cuja decadência denuncia a ausência de trabalhadoras e clientes da papelaria e da sapataria vizinhas. Vale que ainda restam alguns dos habituais. A bica é um dos últimos luxos que permite ou força a socialização de quem vive cada vez mais enclausurado pela economia da depressão.

Sabem sobre as suas vidas melhor do que ninguém. Os sacrifícios, as dores, as frustrações. E não querem saber dos novos cortes sociais do Governo, ou do aumento do desemprego. Calem-se, que a vida que carregam já lhes chega. As manifestações, os sindicatos, os partidos, as eleições… já estão fartos. Não têm ânimo nem para descer as escadas e ir ver o filme que passa na associação recreativa por insistência de parceria entre o diretor solitário – que abre a porta – e a última ativista do cineclube da cidade - que, por fim, fechará as luzes e porta.

2. As biografias são atravessadas por determinações sociais e biológicas. É principalmente o social que pretendo sublinhar nesta abordagem sobre política e depressão.

A crítica da economia política revela determinações fundamentais, embora não exclusivas, do social. As classes, os géneros, as nações de que os indivíduos formam parte combinam-se com outros elementos e densificam a concretude de cada indivíduo e de toda a vida social.

Se a matéria inorgânica é a matéria bruta e o biológico forma a matéria-prima do ser humano, não há ser social sem que este, qual edifício, se erga das fundações do trabalho. Aqui refiro-me ao trabalho como categoria fundante do ser social, ou seja, como “atividade humana que transforma a natureza nos bens necessários à reprodução social” (Lessa 2012:25). É desse salto ontológico que emerge a vida social e que permite ao ser humano criar-se a si próprio, libertando-se da exclusividade das determinações biológicas.

Vivemos a Segunda Grande Depressão, sequência da Crise Financeira Global 2007/08. Refiro-me à depressão no sentido socioeconómico, esta que num novo tempo e com novas contradições reedita a Grande Depressão que se seguiu à crise de 1929. Não sendo apologista de uma psicologização nem, muito menos, duma patologização do social, a relação metafórica é útil e a relação material existe. É assim que a polissemia da palavra depressão dialoga entre campos do conhecimento distintos.

As sociedades europeias, e não só, estão atualmente a ser duplamente pressionadas. Por um lado, o aumento da exploração de quem trabalha e de quem, qual exército de reserva de braços e mentes, com o seu desemprego contribui como arma de arremesso para a docilidade das trabalhadoras e trabalhadores em situação precária.

Por outro lado, uma vaga conservadora entrelaça-se com esse aumento da exploração e cresce a repressão e o ataque aos direitos individuais e coletivos. Do salário à liberdade de opinião, do direito de manifestação aos direitos sexuais e reprodutivos, o ataque é geral.

A ordem mantida pelo Estado emerge das relações sociais existentes, pelo que o aumento da exploração e da repressão não se traduz automaticamente num crescimento das necessárias forças emancipatórias. A consciência dos reais interesses das exploradas e dos oprimidos não brota automaticamente. As lutas sociais e a batalha de ideias são processos pedagógicos.

O isolamento dos indivíduos e o esmagamento do espírito crítico são chaves da apatia social e da desistência. Simultaneamente, também se degradam as condições de vida dos elementos mais conscientes e interventivos socialmente.

As primeiras a ser afastadas da esfera pública são as mulheres. Maioritárias no desemprego, nos baixos salários e na precariedade são ainda empurradas para a economia doméstica do cuidado, perante os cortes sociais e a carestia de vida.

Também as identidades sexuais e de género oprimidas sentem o crescimento da repressão no trabalho, na falta dele, no direito ao espaço público ou acesso a direitos sociais. E o mesmo se passa com nacionalidades e culturas oprimidas. Os tempos da depressão económica são esmagadores desde o pão até ao sonho.

Tomar consciência de tudo isto é um parto doloroso, é difícil pôr os pés no chão. Compreender as relações e as forças sociais em ação é um processo doloroso. E se este processo pode ser mais ou menos individual, consoante os casos, já a luta consciente pelas transformações sociais é sempre um processo coletivo.

3. Falando sobre a influência de Jorge Amado no seu trabalho, o diretor de cinema brasileiro Nelson Pereira dos Santos, numa entrevista à revista CULT, sublinhou uma distinção “os heróis do Jorge, naquele tempo, tinham o happy end quando entravam no Partido Comunista e, no meu caso, continuam sendo cidadãos da favela, sem essa determinação política que fazia o fecho do personagem, que nos anos 1930 era uma coisa audaciosa, bonita e promissora”. Tempo de voltar aos “subterrâneos da liberdade”?

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Texto inédito: originalmente escrito para o segundo livro da Coleção Olhares, 2014, que não chegou a ser publicado por interrupção do projeto editorial.

Referências

Sérgio Lessa – Mundo dos Homens. Trabalho e Ser Social. 3a edição - revista e corrigida. São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

Jorge Amado - Os Subterrâneos da Liberdade. Vols. I, II, III. Dom Quixote, 2012 [original 1954].

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